Coisas da genética

(Elaine Cristina Dos Reis Costa Locatelli)

Lembro-me de querer ser professora de Língua Portuguesa desde sempre, mas me casei cedo demais e tive que fazer outras escolhas, afinal, eram quatro filhos pra criar e a faculdade ficou pra depois. Eu apenas esperava poder retornar aos estudos e realizar meu sonho de lecionar. Lembro-me, também, de uma conversa que tive com a Zezé numa visita em minha casa na qual ela me disse: “Elaine, você deve a si mesma uma faculdade de Letras”. Assim após 19 anos, “eis-me aqui”, já sou professora. Contudo, não me contento apenas em ser professora, penso que, se esperei tanto tempo pra me realizar, tenho que fazer a diferença. Não que eu deva ser a melhor, mas desejo ensinar aos meus alunos a gostarem, ao menos um pouco mais, da língua materna. E é exatamente o que tenho procurado fazer.

Neste ano, estou lecionando pela manhã numa escola estadual rural muito longe de casa. Fica num distrito de Mateus Leme, gasto duas horas pra chegar lá de ônibus. Peguei uma turma de 3º ano do Ensino Médio que ninguém queria, pois devido às novas burocracias do governo, os professores serão avaliados pelo desempenho dos alunos e, como eles farão a prova no final do ano, os professores de português optaram por turmas que não implicassem em tanta responsabilidade. E é quase uma loucura, pois só tenho essa turma, viajo uma distância, a passagem é cara e o custo-benefício é muito pequeno. “Mas eu amo desafios!” Contudo, confesso ter ficado um pouco insegura no início, pois leciono a noite a quase três anos na EJA (Educação de Jovens e Adultos), e é a 1ª vez que sou regente de uma turma de formandos do Ensino Médio. Assim, me preparei bastante pras primeiras aulas. Fiz algumas dinâmicas pra quebrar o gelo e procurei me aproximar da realidade de cada um. Feitas as devidas apresentações, nas aulas subseqüentes resolvi trabalhar o gênero textual crônica usando como base: “Minha última crônica - de Fernando Sabino”. Após a leitura, o levantamento das características e de interpretações de texto (desculpem-me os termos - é força do hábito), li pra eles um texto que eu mesma fiz intitulado: “Ele não está mais aqui”, onde escrevi sobre a linda relação de amor dos meus avós, e como foi, pra minha avó, a experiência da perda do seu esposo que faleceu após 66 anos de união. Ao ler pra eles aquela crônica e explicar os motivos que me levaram a escrevê-la, revelei-lhes, um pedaço da minha própria história. Então lhes pedi que fizessem uma crônica também e que a trouxessem na próxima aula.

Na aula seguinte todos se mostraram dispostos a lerem seus textos espontaneamente. Deixei que o fizessem um após outro, e qual não foi a minha surpresa? Alguns, durante a leitura, começaram a chorar e outros compartilharam a emoção num silencio respeitoso. É que escreveram sobre coisas demasiadamente especiais pra eles, como: a perda de alguém, ou sobre a relação com um amigo querido, sobre namorados, familiares e etc., e à medida que liam seus textos, revelavam histórias particulares e coisas pessoais, então foi impossível conterem as lágrimas.

Diante de uma classe com 32 alunos completamente emocionados fiquei extasiada. É tão falado que os jovens de hoje têm os corações endurecidos, que não sabem mais chorar, que não apreciam valores familiares, que são egoístas e autoritários, e eu estava ali, perante um grupo de adolescentes que contrariavam todos esses mitos. Desta feita eu pude concluir que, na verdade, os jovens de todas as idades sentem necessidade de se expressar, mas precisam se certificar de que há segurança para isso, o seu público-alvo tem que estar apto a compreendê-los e não criticá-los. Pude perceber que é fácil reclamar da dureza dos jovens da atualidade quando não lhe oferecemos nenhuma oportunidade para se revelarem aos demais, com seus medos, seus valores, suas alegrias... Alguns professores se portam como verdadeiras celebridades, constroem barreiras entre o aluno e a suas próprias personagens, fingem ser o que não são e esperam deles um aprendizado mecânico e impessoal.

Ao contemplar aquela turma, ao ver os olhos vermelhos de uns e os contritos de outros, fiquei muito constrangida. Elogiei a atitude, a qualidade textual e ouvi de um aluno chamado Cássio: ”Professora, é você que nos inspira!” Assim sendo, pude concluir que aquela turma tinha sido um presente de Deus pra mim!

Então pensei no papai e em como deveriam ter sido suas aulas, nem sei como as ministrava, já que o conheci pessoalmente muito pouco, mas o suficiente pra saber que era dinâmico, prendia o aluno nas suas explicações e que se fazia respeitar. Quando conversávamos, conseguiu impregnar em mim um desejo de aprender aquela língua que parecia tão especial, pois diante de uma pronúncia tão apurada, ele só podia falar um idioma diferente do meu. E eu fui mais longe, não apenas quis aprender com ele, mas imitá-lo na sua escolha. “Eu adoro lecionar!”

Olhando meus alunos empolgados na leitura de seus textos, me senti bastante próxima do papai e da vocação que professava. E sei que terei outras situações de autoidentificação com ele, pois estou sempre maquinando meios de ensinar Língua Portuguesa suficientemente para que meus alunos sejam aprovados, elevem a nota de sua escola, e também pra torná-los autônomos na escrita, na pronúncia, na capacidade de se expressar e de se relacionar com as pessoas. Quero conquistá-los, atraí-los, impactá-los com uma proposta mais humanizada de aprendizado onde eu, certamente, mais aprendo do que ensino. Daí eu pergunto à Sandra “Essa paixão inflamada pelo ato de ensinar, se explica pela genética?

0 Responses