“Ele não está mais aqui”




“Ele não está mais aqui”

Enquanto olhava fixamente para o homem que jazia sem vida, uma sensação de ausência tomava conta de sua alma. Um vazio sem precedentes de uma dor incomensurável.

A família esforçava por ampará-la, prevendo que logo não suportaria mais o sofrimento e já aguardavam pelo momento em que precisariam medicá-la, assim a seguravam de modo que seus pezinhos miúdos mal tocavam o chão.

Ela era uma mulher intrigante, uma figura tão franzina, tão branquinha, tão pequena que, ao vê-la, tinha-se a impressão de que um único sopro seria necessário para quebrá-la com a facilidade com que se quebra um cristal. Seus olhos, de um azul tão puro, tão suave, sugeriam a doçura e a transparência de sua alma. E suas mãozinhas? Enrugadas e macias, teimavam em prender-se a quaisquer pares de mãos alheias, independente de quem fossem os donos. Apenas queria agüentar firme e possibilitar ao seu amado uma despedida digna de um homem que em tudo foi sempre um vencedor.

Olhava ternamente para o caixão, que comportava o corpo daquele ao qual amara por sessenta e seis anos. Uma vida inteira juntos! Pensava placidamente nos oito filhos, nos trinta e um netos, nos vinte e oito bisnetos, e em todos os planos que puderam realizar até e nos que se perderam em meio às incoerências da vida. Lembrou do terno que ela recebera de presente de um amigo francês e que tentou, diligentemente, vendê-lo por considerá-lo demasiadamente elegante e que, de certo, não encontraria ocasião propícia para usá-lo. Que ironia! Seu precioso terno serviu de honraria para que recebesse o último adeus. Fora, decididamente um apaixonado pela vida.

As pessoas não entendiam a suportabilidade dela. Não compreendiam como podia ser possível que ainda se mantivesse de pé diante de uma perda tão grande? Não obstante seu controle aparente, ninguém tinha acesso ao deserto encravado em seu coração. Era um misto de dor e revolta por uma doença maldita que não respeitou sua dependência completa daquele amor por aquele homem e o levou para longe de si e de sua afetuosa companhia.

Nunca fora uma esposa como as outras. Não sabia ler, nem tampouco escrever. Não sabia fazer compras sozinha e nem se vestir sem o importante veredicto do amado. Não sabia como iria preencher suas tardes outrora regadas por pequenas risadas cheias de segredos no sofá enquanto recordavam as travessuras dos filhos e netos. Lembranças de que a sutileza da vida se revela sempre e muito mais na simplicidade.

Depois de duas semanas daquele fatídico dia voltou para casa. Não adiantaria se esconder ou fugir: Por onde quer que fosse a ausência dele deixava marcas indeléveis em seu coração. Passou por noites tenebrosas, pois desejava ardentemente a presença dele. Sentia seu cheiro, ansiava por ouvir o ruído tão peculiar de sua respiração dormindo ao seu lado. Tudo virou saudades. . .

Levantou-se da cama com a dificuldade costumeira aos que já avançaram na idade­ _ “oitenta e um anos e ainda preocupava-se em cuidar dos afazeres domésticos”, era uma forma de manter-se viva ao menos fisicamente. Caminhou até a cozinha, sentiu fome, fez café e, num gesto instintivo, olhou para a mesa esperando encontrar os pães que, durante os sessenta e seis anos de casamento, o marido adquirira o hábito de comprar todas as manhãs. A ela cabia apenas o aroma de café fresquinho inundando a casa. . .

Repentinamente, em meio a um surto inesperado, um som gutural encheu a casa e esgueirou-se quintal afora! Foi ela quem gritou! Rasgou-se em lágrimas enquanto desabava no chão sem que ninguém pudesse ampará-la e impedir sua queda. Lamentava ruidosamente, enquanto pingos grossos corriam pela fonte até encontrar a frieza do chão. Angustiou-se, soluçou e por fim se deu conta de que o desespero que de súbito lhe tomou, não era nem pela tristeza, nem pela fome que sentia, mas por que o homem que lhe comprara o pão por sessenta e seis anos não estava mais ali. Tinha ido embora. . .

(Elaine Cristina dos Reis Costa Locatelli)



2 Responses
  1. Unknown Says:

    elaine: queria te parabenizar pelo seu desempenho, assim como professora, amiga e assima de tudo mãe,achei muito lindo da forma com que você escreve esse lindo texto. quando estava lendo me passou pela cabeça, quantas pessoas não dão valor as familias e aquela mulher ali presente ao marido amando-o e respeitando-o até a hora de sua morte, esse texto me fez refletir e amar mais minha familia, obrigada por você existir nas nossas vidas, obrigada por você me ajudar na hora em que mais precisei de você!é um prazer enorme ter você como minha professora te amoooooooooo!!! contiNui sempre assim brilhando nas nossas vidas!!! PARABÉNS


  2. Nossa, hoje tantos anos anos depois descubro este comentario lindo...muito obg!!!